10/02/2012

A trilogia das Descobertas




A trilogia das descobertas iniciada em 1982 com "Por Este Rio Acima" chega ao fim com um disco luminoso: "Em busca das Montanhas Azuis" celebra em 23 canções os antigos mercadores e os que sonhavam descobrir mundo. Encostado aos cenários da história, Fausto  Bordalo Dias fala-nos do presente e também do futuro.

O bilhete de identidade regista 5 de Dezembro de 1948, mas a mãe disse-lhe que nasceu a 26 de Novembro desse ano, a bordo de um navio, em pleno Atlântico. E é esse dia que ele celebra como o do seu aniversário porque "as mães nunca mentem", como ele diz, citando Borges. Mas nem do lugar que lhe foi atribuído como terra natal, Vila Franca das Naves, está ausente a sugestão marítima. Fausto Bordalo Dias completa amanhã 63 anos, na mesma semana em que chegou às lojas o terceiro volume da sua trilogia sobre as descobertas, sucessor de "Por Este Rio Acima" (1982) e "Crónicas da Terra Ardente" (1994). É um ciclo que se fecha, uma viagem que a pretexto do passado aponta ao presente e também ao futuro. Na capa do disco, tal como na dos dois anteriores, volta a estar um disco voador, para que não nos esqueçamos dessa transversal do tempo.

Esta trilogia consumiu praticamente metade da sua vida. Qual foi a principal força motora para se entregar a este trabalho?

O motivo mais próximo foi, nos finais dos anos [19]70, ter um livro de cabeceira chamado "A Peregrinação", de Fernão Mendes Pinto. Lia-o quando me deitava e foi para mim empolgante aquela primeira leitura. Daí nasceu a ideia de fazer um disco sobre essa obra que me encantou. O motivo talvez mais longínquo, embora eu não tenha a certeza dessa motivação, foi que eu participei na diáspora... 

Mas esse é semi-consciente, não?

A progressão daquilo até África, onde eu vivi, torna lógico pensar nisso como uma motivação subconsciente. Porque eu nunca estive na Índia! Quando eu fiz o "Por este Rio Acima" não tinha ideia de continuar.

O que o levou a essa ideia?
A diáspora tinha de continuar, já vinha de antes do Fernão Mendes Pinto e continuou depois. Mas continuar como? Aí surgiu a "História Trágico-Marítima". E se o "Por este Rio Acima" representa a água, o mar, o "Crónicas da Terra Ardente", nem que fosse por força dos naufrágios, é a aproximação à terra. Quando eu fiz o segundo disco já tinha visto que ia continuar. E dei sinais, embora ténues, disso. Na 18.ª canção do "Crónicas", o Sepúlveda enlouquece e perde-se pela terra dentro. É o primeiro sinal: alguma coisa vai acontecer, não vai morrer aqui. O segundo sinal é que eu os ponho a tentar subir um rio, na costa oriental de África. E este novo disco começa com a subida de um rio, só que na costa ocidental. É um roteiro descontínuo. São trajectos que se sucedem, vê-se no mapa [que está no disco] que entram simultaneamente por todos os lados.

Todos os textos que serviram de inspiração a este novo disco, do Cadamosto, Diogo Eanes de Azurara, Conde de Ficalho, dos pombeiros, etc., foram coligidos ao longo dos anos?

Comecei por ler livros genéricos sobre a expansão portuguesa. E estes, feitos por investigadores, citavam os autores antigos. Passei então a comprar alguns livros e fiquei com uma prateleira bastante extensa. Não habito as bibliotecas porque preciso de ler ouvindo música. É confrangedor entrar numa biblioteca e ouvir aquele silêncio. Então recorri a uma investigadora japonesa chamada Kioko Koiso, que encontrou a obras de que eu precisava. Umas em alfarrabistas, outras em fotocópias em várias instituições. 

Que músicas ouvia, enquanto lia esses textos?

As mais variadas, como pano de fundo, desde a clássica ao jazz, passando pela música popular. Eu sei que estou a dizer um sacrilégio, a música é para ouvir sem mais nada, mas eu a ler não suporto o silêncio. Muitas vezes leio até a ouvir rádio.

Este disco tem, tal como os anteriores da trilogia, um intróito instrumental. Que atmosfera quis transmitir agora?

Um tom clássico. Para quê? Para dizer que o ponto de observação é o do português, o do europeu, que ali chega. 

A continuação dessa chegada é um momento de descoberta, de maravilhamento...
Sem dúvida. Eles teriam notícias dos árabes mas dos negros, negros, provavelmente não. Eu escrevo aí "e vêm baços/ e outros pardos". Mas a visão daquelas paisagens é o êxtase. Eles passam muito tempo junto à costa vendo deserto e mais deserto. Até que lhes surge uma natureza verdadeiramente majestosa e luxuriante. E há uma coisa curiosa: no relato do Diogo Gomes, e tanto quanto penso também no Cadamosto, há leões e elefantes em zonas de África onde hoje já não existem. É uma coisa espantosa.

E há a escravatura, vista de modo diferente em "Nos palmares das baías".

Os portugueses, quando lá chegaram, ficaram absolutamente admirados (e indignados) por verem pessoas a serem trocadas por mercadorias. O sistema da escravatura já ali funcionava em pleno. A tese brasileirinha que atribui aos portugueses o fenómeno da escravatura é uma tese muito frágil e muito ignorante, na minha opinião. Protagonizada por alguns cantores brasileiros, não percebe que os portugueses aprenderam o sistema de escravatura com os próprios negros e os árabes. Depois adoptaram-na, é verdade. Mas é preciso perceber que tão esclavagista é quem compra como quem vende. E quem vendia eram os negros.

De seguida, em "Fascínio e sedução", vem o tema da atracção sexual...

O que eu quero realçar é que há um certo erotismo africano. Que é natural da parte deles, são assim. E há um encanto absoluto dos portugueses pela mulher africana. Saem de Portugal com mulheres vestidas até ao pescoço e começam em África a vê-las semi-nuas... é uma coisa alucinante. E ainda por cima vindos de largos meses no mar. Mas nessa canção o que sucede é um pouco ao contrário, porque são mulheres árabes quem procura seduzir dois portugueses que ficaram reféns numa negociação.

"À luz mais frágil das auroras" fala de uma captura humana, uma mulher precisamente, mas não é relatada como acto violento e sim como algo suave. Porquê?

Aí não há ainda o conceito de escravatura, eles procuravam alguém para mostrar como eles eram, quando voltassem a Portugal. Eles fazem uma cilada, sem dúvida, e capturam uma jovem. Mas não a tratam mal. Levam-na na palma da mão ["ó que negra mais linda/ cingimos agora/ suavemente levada/ à luz mais frágil das auroras"].

Mas "À sombra das ciladas" já traz a marca do sangue e da morte...

É uma canção que me emociona. Porque eu não falo só dos mortos portugueses, falo também de todos os outros, mesmo das vítimas dos combates entre tribos. Porque para mim a guerra é sempre de lamentar. E a guerra persiste, persistem as guerras tribais em África... Encostado aos cenários da história, eu falo do presente e até do futuro.

"De um crescente dourado" mostra outro tipo de fascínio, este pelo islamismo.
Fala sobre Pêro da Covilhã, um homem que atravessa rotas perigosíssimas e que é um espião. Sempre lhe chamei o James Bond de D. João II. Truculento, ao que parece muito bem preparado fisicamente, teve que se identificar como árabe para descobrir as rotas secretas do comércio. Por isso inicia-se no islamismo e, segundo o Conde de Ficalho, sem nunca ter perdido a fé cristã. A minha tese é diferente: ele absorveu de tal maneira essa nova personalidade que acabou por converter-se ao islamismo de uma forma sincera, tanto que nunca mais voltou a Portugal. O padre Francisco Álvares encontrou-o anos depois na Etiópia, já com muito filho e muita mulher à volta.


É ainda das viagens de Pêro da Covilhã que vêm as "Bárbaras iguarias", uma reacção de nojo pelos banquetes sangrentos e ao mesmo tempo de espanto perante os excessos de luxúria.



Diz-se que o Preste João das Índias não existia, mas existia. Só que eles imaginavam um rei cristão em palácio de ouro e encontraram sem dúvida um cristão mas já com rituais muito diferentes. Era nómada e andava com um acampamento atrás dele. Essa canção fala da surpresa com os banquetes que eles faziam e que degeneravam em autênticas bacanais.

Em "Por altas serras de montanhas" retoma-se a viagem. Para onde?
É a descrição da viagem de norte para sul, em direcção à Etiópia. O que procuro dizer também é que a viagem dos portugueses foi subindo e atravessando rios, atravessando grandes matagais e até desertos. Numa embaixada que durou sete anos!

E "O feiticeiro de Melinde", o que pretende significar?
África está associada à feitiçaria, ainda hoje. Há o feiticeiro, que aconselha o soba, o chefe. Mas através do feitiço é qualquer coisa de sonho, onírica. Nessa canção, os portugueses apoderam-se de um barco e o feiticeiro faz com que ele não se mova, apesar da agitação das águas e dos ventos. 

Falando de águas: "Pelos rios de Cuama" renova o espanto pela natureza, dos muitos peixes às zebras "entre outras feras mais bichosas". É de, novo, um maravilhamento?

Os portugueses viram vários rios e no entanto o rio era um só: o Zambeze. Fala da natureza magnífica, deslumbrante, mas entre a "pescaria saborosa" também se fala de mulheres que eles viam nas águas e que eram descritas como sereias. 

Esse espanto voltará a reflectir-se mais adiante, na canção "Quase em tons de cristal".
Aí começa um adeus. Estão no Manamotapa, hoje Zimbabwe, onde eles diziam que estavam as montanhas azuis. É a aproximação final da viagem. Mas é também, ao mesmo tempo, já uma visualização dessas tais montanhas azuis.

Esse adeus vai desembocar no "De costa a contracosta", já com um ritmo mais batido...
Isso está baseado no relato dos pombeiros, que eram negros ou mestiços, e como não escreviam um português perfeito, têm frases, que eu reproduzo entre aspas, como "andamos com o sol às costas" ou "levantamos a madrugada". Antes do Capelo e Ivens, forem eles que atravessaram primeiro, foram os pioneiros. Mas ninguém fala neles.

Esse tema fecha, de certo modo, a viagem. Mas depois ainda há dois apontamentos. O primeiro é sobre o Silva Porto, uma balada com um ritmo contido...

Baseei-me um bocadinho nas baladas do Zeca Afonso, as coisas que ele fazia com guitarra. "Os eunucos", de certo modo "Os vampiros" ou outros ritmos que eu fiz com ele na guitarra, como "O coro dos tribunais". E utilizei o ternário porque o Silva Porto era do norte, era do Porto, e ao mesmo tempo aquilo indica um vira. Mas o Silva Porto para mim foi uma paixão. Morreu em 1890 mas, quando eu era menino, em África ainda se falava dele. Na altura, a cidade chamava-se Silva Porto porque, como eu digo na canção, ele desenhou ali a Póvoa de Belmonte, um conjunto de casas. A dele, curiosamente, era rectangular mas era uma cubata, com três divisões. O nome "embala", que lhe deram, é o sítio onde o soba coloca a residência dos seus familiares. E aquilo era a embala do Silva Porto. Rodeada de laranjeiras (em árabe, Portugal era laranja), porque era a forma de ele se rodear da sua Pátria, ele era um patriota com grande rigor moral.

Essa abordagem do Silva Porto é, ao mesmo tempo, um regresso à sua infância? 
Até aos meus dezoito anos visitei a embala do Silva Porto. Como podia imaginar que um dia ia escrever uma canção sobre ele? Agora, tive que resolver uma vida de 50 anos em pouco mais de três minutos. Deu-me muito trabalho, de tal maneira que a terminei já depois de o período de estúdio ter terminado. Foi uma operação relâmpago. Custou-me imenso, mas tinha que acabar assim: Silva Porto, o último sertanejo, o último dos românticos. Pouco tempos depois essa actividade entrou em crise, era uma actividade de mercadores mas também de descoberta, de conhecimento dos povos.

Mas o disco não acaba aí, há ainda um momento mais pessoal...
O Silva Porto, para mim, seria o fim. Acabou por não ser porque eu tinha um texto escrito sobre a minha mãe. Foi o primeiro tema que escrevi para o disco. Porque ela ficou lá, faleceu em África, tinha eu 17 anos. Marcou-me imenso. Ela antecipava as chuvas dizendo "Cheira a chuva".

Daí o título "O perfume das chuvas". E a Welwitschia Mirabilis invocada na canção?
É uma flor que nasce no deserto. Eu acho que ela, muito jovem, foi uma Welwitschia Mirabilis naquele deserto, saída do Portugal das Beiras. No fim do texto, pela primeira vez na minha vida, digo o nome dela: Alice. Eu chamava-lhe mãe.

O disco chama-se "Em busca das montanhas azuis" e essa cor remete-nos para um universo menos real que onírico. Foi isso que quis transmitir?
Sem dúvida. Procurei privilegiar os homens que se movimentaram como mercadores e, ainda mais do que estes, os que sonhavam descobrir mundo. Muitos viajavam para África com a paixão de conhecer e criaram no povo português uma reacção tão forte quanto aquela que nós conhecemos depois nas viagens à Lua e na conquista do espaço. Comparando com o "Por este Rio Acima" e com o "Crónicas da Terra Ardente", este disco é pretérito e futuro. Porque veio muito atrás e foi muito mais à frente.

É, ostensivamente, o fechar de um ciclo?
A minha fotografia que está no disco faz um paralelo com a de "Por Este Rio Acima" e apetecia-me dizer que foi por acaso, mas não é verdade. A primeira foi a preto e branco, tirada no Jardim da Estrela. Esta é a cores e foi tirada no jardim do Museu do Traje. Comecei assim e acabei assim. Essas duas fotos marcam um princípio e um fim. 



Fonte -   Nuno Pacheco - Jornal Público    






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