Consta que nasceu num barco entre Portugal
e Angola, e foi nesta antiga colónia que passou a infância e a adolescência, num tempo em que o mundo parecia ser a preto e
branco. Depois veio para Lisboa, continuar os estudos na Universidade. A
Revolução de 74 apanhou-o pronto pró que der e vier e nos tempos que se
seguiram não se cansou de procurar um beco com saída onde brilhasse uma luz que
iluminasse a madrugada dos trapeiros. Cantou canções de luta e contou histórias
de viageiros antes de partir por este rio acima, atento ao despertar dos
alquimistas. Viajou para além das cordilheiras e registou o que viu em crónicas
da terra ardente. E porque atrás dos tempos vêm tempos, passados os 50 anos
escreveu uma ópera mágica que tem tudo a ver com o 25 de Abril e o que veio
depois.
É um homem discreto e um artista exigente. Gosta de estar com os amigos e
não volta costas a um arroz de lampreia nem a uma boa conversa. O público é-lhe
fiel, e ele retribui com as canções que a gente sabe. A música que faz situa-se
num patamar superior do espectáculo, em Portugal e no resto do mundo, mas não é
isso que o faz correr. Também o quotidiano fútil das celebridades é algo que
lhe é estranho: jamais o encontrarão na Caras ou em algo do género, e
dificilmente hão-de pôr-lhe a vista em cima em alguma coisa que cheire a
acontecimento social.
É assim o
Fausto. Sereno, leal, intransigente em tudo aquilo que considera ser o
essencial, tanto na vida como na arte – sendo que a arte é simplesmente uma
forma superior de vida. É um homem de convicções – políticas, humanas,
estéticas – mas nunca quis ser um homem de certezas. Amigo certo e adversário
temível, mantém desde sempre uma relação de distância tanto com o poder
político como com o poder mediático, e nunca se vergou perante nenhum. Porque
há homens que não têm preço nem querem perder a honra: os homens dignos, como
este.
– Em 1974
fizeste um disco onde dizias que «haja lá o que houver estou p’rò que der e
vier». Trinta anos depois, como é que estás?
– A minha
disponibilidade, as causas que eu abraço no geral são as mesmas. O que se
alterou com o 25 de Abril, na minha opinião, foi que passou a haver a
possibilidade do livre exercício da cidadania, ou seja: a liberdade. Depois da
consagração dessa liberdade, o 25 de Abril começa a ser um amargo de boca, seja
para quem pensa à esquerda, seja para quem pensa à direita. Porque o 25 de
Abril foi para além daquilo que a direita esperava, avançou para paisagens que
eles não desejavam, assim como a esquerda pensará que ficou muito aquém dos seus
sonhos. É esse amargo de boca que leva a campanhas como a que foi feita
recentemente...
– Sobre a
«evolução» de Abril...
– ...
dizendo que o 25 de Abril não é revolução, é evolução. Ou a ideia de retirar
qualquer conotação ideológica do 25 de Abril – que é uma coisa que me
surpreende porque eu não sei qual é a conotação ideológica do 25 de Abril! A
ideologia é um sistema de representações, e eu não conheço um sistema de
representações do 25 de Abril... Conheço a amálgama de ideologias que o 25 de
Abril despoletou. E acho que no 25 de Abril se manifestam todas as ideologias
que apareceram nessa mesma data. Aliás, esse é o espírito de democracia e de
liberdade que se instalou: cada um pode e deve exercer o seu direito de
afirmação dos valores em que acredita.
– Esta
«desideologização»... Dá ideia de que, por trás desse conceito há também,
afinal, uma ideologia...
– Não há
uma ideologia, há várias, nomeadamente a do partido do governo! A comemoração
do 25 de Abril, ao longo destes trinta anos, tem tido várias matrizes consoante
a situação político-partidária do momento em que essas comemorações vão sendo
feitas. Por isso eu digo que não sei qual é a ideologia do 25 de Abril: porque
não surgiu uma nova ideologia, o que aconteceu foi manifestaram-se a ideologia socialista,
a comunista, a social-democrata, a da extrema-esquerda, nas suas diferentes
tonalidades. Uns fechavam o punho, outros abriam-no, não se passou nada de
inédito, o que houve foi uma explosão multicolor de posições ideológicas.
Estar, agora, a tentar apagar isto, fazer crer que a revolução afinal é
evolução, é ter um gravíssimo complexo relativamente àquilo que foi a afirmação
da liberdade e da democracia.
– O 25 de
Abril restituiu-nos a cidadania. E o resto?
– Restituiu
a cidadania, mas também criou um sistema pluripartidário com uma enorme aversão
aos movimentos cívicos, como se vê pela reacção negativa de diversos dirigentes
partidários à realização do Tribunal Mundial sobre o Iraque[1] ["]. Ora é
este género de movimentos que poderá constituir um dos meios que nos
conduziriam ao aprofundamento da democracia. Decorridos estes anos após o 25 de
Abril, a primeira coisa que nos podemos questionar é onde está a justiça
social? Onde está garantido o direito à felicidade das pessoas quando estão à
mercê de uma sociedade fortemente competitiva e onde milhares de jovens estão
condenados ao desemprego, à marginalização, porque são dirigidos para se
formarem em cursos completamente desadequados às necessidades do mercado e do
país? É uma situação grave, sobretudo se pensarmos que o direito ao trabalho é
um direito do homem, consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem
[artigo 23º], e que é sistematicamente violado. Mas quem o viola e não se
preocupa nada com isso já é capaz de se preocupar bastante com o não
cumprimento dos direitos da fala e do pensamento... Dá a sensação de que
estamos cada vez mais longe dos objectivos do 25 de Abril, e que de alguma
forma a grande mudança que houve já só se nota por aquilo que ficou: a
liberdade. Mas esta não resolve todas as necessidades que afectam a vida das
pessoas, como é óbvio. Eu diria que, no campo social, a evolução e a involução,
os ciclos positivos e negativos que têm surgido, têm sido aqueles que o sistema
criou, naturalmente. Não deixa de ser escandaloso que agora haja falta de
médicos; e quem é que andou a dificultar a formação de médicos? E depois há
professores de História a mais; mas quem é que os incentivou a formarem-se
nestas áreas? Porque não foi criado um incentivo aos jovens para se formarem noutros
cursos, mais adequados a este mercado de trabalho? O que me parece é que o
comércio da pedagogia falou mais alto. E de quem são as responsabilidades senão
dos governantes dos últimos anos? Há situações desoladoras, mas que são
escondidas por trás de um número: 7,5 por cento de desemprego, por exemplo.
Esta cifra não dá a exacta medida dos problemas dramáticos, de suicídios,
separações brutais de pessoas, de casais, miséria para muita gente. Isso é que
é dramático, profundamente dramático! É um drama que nenhuma cifra ou taxa
revela.
– E todas
essas coisas são tidas como «normais». O desemprego, por exemplo, é uma coisa
que todos os governos acham ser uma inevitabilidade...
– Isso! Faz
parte do sistema. É o funcionamento normal do sistema, embora não devesse ser
assim. É por isso que eu digo, numa canção: «Keynes / ao pé de ti / e arrumado
a um canto / é a alegoria ou o retrato de um santo» – e este «ti» é o sistema
da agiotagem, o neoliberalismo avassalador, é a própria economia, as finanças,
governando o poder político, influenciando, determinando o que deve fazer ou
não, mas sobretudo nele mandando. É que Keynes ainda punha a possibilidade
clara de que o Estado interviesse como elemento regulador num mercado
descontrolado. Estes não! Estes são os «anarco-capitalistas», não querem saber
de regras nem de coisa nenhuma. É a atracção pelo vácuo. É um momento muito
difícil que estamos a atravessar.
– A grande
diferença, se calhar, passa por isso mesmo: há trinta anos havia pelo menos a
esperança, ou a convicção, de que poderíamos alterar alguma coisa, mesmo o
nosso país sozinho poderia alterar. Hoje temos a certeza de que estamos
perfeitamente integrados num sistema global.
– Exacto.
Embora, para mim, a globalização não seja um mal em si mesma. A globalização
tanto pode ser negativa como positiva, atenção! O problema está é no sistema de
funcionamento da economia mundial que pode eventualmente até aproveitar-se
desse meio, mas a globalização não é por si só um mal. O poder político deixou
de dominar o destino das sociedades e passou o poder económico e financeiro a
governar em termos quase absolutos. A lógica do neoliberalismo sem fronteiras
traz como resultado a insensibilidade relativamente aos problemas de ordem
social. Soube há pouco tempo que uma série de grandes financeiros, a quem a
Igreja procurou sensibilizar para as questões de extrema pobreza que se
verificam um pouco por todo o mundo, responderam – cinicamente, com certeza –
que desconheciam que os problemas tivessem esta gravidade. Disseram isto, que
desconheciam... No célebre Hotel Fairmont, de San Francisco, nos Estados Unidos
da América, onde se juntam os grandes magnatas – isto é citado num estudo de
dois jornalistas alemães, que eu li há pouco tempo[2] ["] – eles até
propõem grandes doações para combate à pobreza; mas ao mesmo tempo desejam que
não se «exagere» na dádiva, não vão eles descer no ranking das grandes
fortunas... Tudo isto acontece. E é curioso como aquele ex-secretário de defesa
do Nixon, o Berzinsky, adoptou, como se fosse uma novidade absoluta, o conceito
de titytainment[3] ["], que não é mais do que o panem et circences de
Roma: o que era preciso era dar espectáculo e alguma comida ao povo, para que
eles continuem felizes e distraídos sem incomodar o sistema, amenizando-lhes a
capacidade de revolta.
– Só que
cada vez há mais espectáculo e menos comida...
–
Exactamente. Mas já viste esse tal Berzinsky, encantado com aquela «novidade»,
como se tivesse feito uma nova descoberta? Um conceito que já vem do tempo dos
romanos!
– E mesmo
assim o império romano acabou. Os impérios acabam todos.
– Ah, sim!
E inevitavelmente este terminará. Eu gostava de assistir...
– Eu tenho
essa esperança!
– Eu
também. [risos]
– Nestes
trinta anos o mundo mudou e, é claro, cada um de nós também mudou. Tu hoje não
és, naturalmente, o mesmo Fausto Bordalo Dias que eras há trinta anos. Quais
são as principais diferenças que tu sentes em ti próprio?
– Há,
evidentemente, uma diferença grande entre o «sangue na guelra» da adolescência
e uma maior maturidade. Com a idade que hoje tenho, se fosse possível
transportar-me àqueles tempos, eu não pensaria nem faria as mesmas coisas. É um
disparate dizer «eu faria sempre as mesmas coisas», porque é evidente que a
nossa formação vai sendo outra, as ideias vão-se alterando, a experiência
vai-nos demonstrando isso. E se nós pudéssemos voltar atrás nunca faríamos
exactamente as mesmas coisas, isso é evidente. Para certas questões, talvez,
mas estamos a falar em questões de natureza política. E nessas eu não faria
exactamente a mesma coisa, simplesmente porque não penso da mesma maneira.
Agora: na forma como me enquadro, em temos daquilo que é a minha preocupação ao
longo da vida, continuo a ser um homem de formação socialista. Mas são tempos
diferentes e diferentes são os olhos com que hoje observo o mundo.
– Isso
passa pela música?
– Passa
muito pela música. Eu tenho consciência perfeita de que a canção que nós fizemos,
a chamada canção de intervenção, que acompanhou o PREC – e não venham os
«doutos» querer transpôr a canção de intervenção para antes de 74, quando a
própria expressão só surge em 75 – e claro que era uma canção utilitária,
programática, ideológica, onde não morava a qualidade. Mas nós tínhamos
perfeita consciência disso. Mas aquela era a música necessária, que era preciso
fazer-se. As canções, naquela altura, mobilizavam pessoas, despertavam
consciências, indicavam-lhes caminhos. As coisas eram feitas mesmo em cima do
joelho, sobre acções sociais e políticas que estavam a passar-se no momento.
Sabia-se, como depois se verificou, que mais tarde ou mais cedo este discurso
da canção de intervenção seria substituído pelo discurso dos partidos –
inexistentes na altura, à excepção do PCP. As próprias estruturas sindicais
praticamente não existiam. E naquele momento era muito mais importante ouvir um
cantor de intervenção do que um secretário-geral ou o presidente de um partido.
Eu assisti a isso: quando começava o discurso do político havia uma
assobiadela, uma inquietação, não fosse ele falar demais... Os discursos dos
políticos eram extremamente curtos, e depois vinham as canções. Claro que,
depois, estes papéis inverteram-se, porque se desenvolveu a vida sindical,
associativa, partidária, e os problemas encontraram satisfação nesses centros
de poder. E portanto o discurso da canção alterou-se, não só porque era
circunstancial, e por isso efémero. Mas os autores da canção de intervenção
provaram depois, como haviam feito no passado, que sabem fazer obras de
altíssima qualidade e que são marcantes na cultura musical portuguesa.
– Em 74 e
75 havia mais um objectivo político do que um objectivo artístico...
–
Exactamente. O objectivo artístico estava muito desmaiado e não era o centro
das preocupações.
– Depois as
coisas mudaram, e muito. E nesse aspecto tu tens um percurso muito particular,
com as tuas abordagens da nossa história, tanto da antiga como da recente.
– Eu acho
que, depois do PREC, a ideia que todos nós, cidadãos portugueses, tivemos – e
que depois cada um expressou à sua maneira – foi que começámos a olhar para um
país que já era diferente, que estava redimensionado, já não era o Portugal das
Províncias Ultramarinas: é um Portugal que, curiosamente, se afasta muito
daquele seu imaginário colonial que repousava a Sul, e passa a ser um Portugal
reconciliado com a sua dimensão original, reencontrado com a sua primeira
matriz cultural, a matriz greco-romana. É o reencontro com a Europa. Daí que eu
tivesse necessidade de pensar o que era, afinal, este novo país. E, como se
sabe, é preciso sempre olhar para o passado para se compreender melhor o
presente. Por isso escrevi álbuns como O Despertar dos Alquimistas ou o Para
Além da Cordilheiras, que narram esse reencontro. Ao contrário de uma parte da
esquerda, eu não fui contra a criação de novos espaços ou das grandes regiões,
não fui contra a integração de Portugal na CEE, e a sua evolução para a União
Europeia. Pelo contrário: acho que é um espaço que significa a aproximação de
povos, e isso é benéfico. O que pode discutir-se é que políticas este espaço
vai adoptar, mas isso é outra questão. Eu procurei reflectir esse reencontro,
essa nova identidade cultural e o nascimento de um novo conceito de cidadania, e
portanto o discurso das minhas canções modificou-se bastante. Privilegiou-se a
reflexão cultural, não deixando contudo de haver a reflexão política.
– Que, de
resto, está muito patente na tua Ópera Mágica do Cantor Maldito...
– Eu, neste
disco, assumo o papel de narrador: conto a história, e as personagens que ali
aparecem vivem por si próprias, autónomas até da minha própria vontade. É como
se tivessem chegado aqui, ao escritório onde eu escrevo, e me pedissem a
palavra. E acabei por lhes dar todos os meios para se expressarem. Por isso
acabou por ser um disco de canções de amor e de ódio. Há um cantor que denuncia
o sistema, e o sistema tenta isolá-lo e tenta atacá-lo. É um disco de reflexão
política, mas não é um disco panfletário, e muito menos ideológico.
– Aliás,
este «cantor maldito» é uma personagem, mas há quem veja ali o teu alter-ego.
– Eu,
enquanto narrador, até nem me identifico muito com o cantor. É uma personagem
cheia de contradições, e inclusive tem uma dimensão religiosa na sua formação
que eu não possuo. Ele é um homem tão contraditório que a mim próprio me
surpreende! [risos] Pela primeira vez escrevi canções onde uma série de
personagens se cruzam. E aprendi que as personagens, depois de caracterizadas,
ganham uma alma própria. Se fosse buscar diferentes intérpretes que cantassem
as canções das diferentes personagens, então verificávamos que eu apenas
aparecia em duas canções do disco: cantava a segunda e a última... A segunda
canção é uma espécie de libretto que explica toda a história. Todas as outras
são «capítulos» que pormenorizam a história que se pretende contar.
– Não é por
acaso que escreves uma «ópera mágica». Sublinho este aspecto, porque me parece
que a magia é um elemento muito presente na tua vida e nas tuas canções. Não
sendo tu um homem religioso, qual é a tua relação com o transcendental?
– O
transcendental é algo que tem de estar presente em qualquer pessoa. Nós temos
sempre que pôr essa dúvida, ou então acho que não estamos a ser muito
realistas. A realidade não é apenas aquela que eu vejo e constato, mas também
aquela que existe para além da minha percepção: eu posso não alcançar e não ver
determinadas coisas, no entanto não posso afirmar que elas não existam. Mas a
ligação ou preocupação com aquilo que é o transcendental não conduz
necessariamente a uma atitude religiosa. Aí identifico-me perfeitamente com o
cantor, quando afirma que «desperta suavemente agnóstico e adormece
profundamente ateu». E adormece ateu porque ao longo do dia olha à sua volta,
vê as coisas de tal maneira tão negras e trágicas, que logo diz: «Já não tenho
dúvidas, Ele não existe!»
– Mas tu
tens dúvidas...
– Lá está:
eu digo que estou de acordo com o cantor nesse aspecto porque também vacilo,
muitas vezes, entre o agnóstico e o ateu. Entre o pensamento de que nada pode
existir que esteja acima do destino traçado pelos próprios homens, e a
interrogação...
– Entre a
posição do que não conhece e a do que não acredita.
–
Exactamente. Mas eu acho que essa relação é normal, e é provavelmente salutar.
Eu não sou um homem de certezas, sou um homem de convicções. Mas a convicção é
aquilo que me anima neste momento, e amanhã pode não se confirmar.
– Tu
passaste a infância e parte da juventude em Angola. De que modo é que a tua
formação africana contribuiu para a pessoa que és hoje?
– Sabes?,
para mim, África é uma coisa que vai sendo cada vez mais longínqua, uma imagem
ténue. Se me traz boas recordações é para negar esta África actual, que ainda é
mais triste do que a África Colonial. Tenho cada vez mais uma posição de
esquecimento, de afastamento dessa realidade, porque não me dá alegria nenhuma,
pelo contrário...
– Eu já li
opiniões tuas, nomeadamente sobre a cleptocracia reinante em Angola, que são
muito duras relativamente ao que se passou após a independência...
– O
problema é que eu estou convencido de que não houve independência. Há é uma
maior dependência daquele país, porque a independência é qualquer coisa que vem
ao encontro da felicidade dos povos, e não o que possa contribuir para a sua
infelicidade prolongada. E o pior é que não se vê uma meta que ponha fim a este
sofrimento todo, às situações escandalosas de corrupção que toda a gente
conhece! É um poder de tal maneira ávido das suas percentagens e negócios que
esqueceu o povo! O povo está entregue a si próprio, é uma situação extremamente
difícil. Eu não me sinto nada, mas mesmo nada, feliz com essa situação e
procuro distanciar-me ao máximo, quase esquecer o que aconteceu. Há uma
rejeição enorme da minha parte. Não gosto nada daquilo.
– Deve ser
particularmente doloroso para quem lá viveu e acreditou...
– Já disse,
e mantenho: a Angola colonial era mais feliz do que esta! Não posso dizer outra
coisa, fui lá ver, com os meus próprios olhos, constatei. Na Angola colonial
não vi meninos abandonados porque as mães africanas não abandonam os seus
filhos. E agora, o que é que se passa? A guerra acabou! A pacificação em
princípio está feita, porque os grupos guerreiros chegaram a acordo, estão
quietos; mas sentados na mesma mesa, no mesmo banquete. Até há pouco tempo
houve uma geração de esquerda que tinha um gravíssimo complexo de inferioridade
relativamente às questões coloniais, mas eu não pertenço a essa geração, sou
mais jovem. Esses achavam que era preciso não «bater» no regime do MPLA, mas eu
não sofro desse complexo. Até porque as próprias perspectivas de ideal
socialista desses movimentos acabaram há muito, e isso foi protagonizado pelos
próprios, que é o mais incrível! Não houve alteração praticamente nenhuma na
cúpula do poder, ela própria se regenerou: «Deixamos de ser socialistas,
passamos a ser neoliberais. Com vantagens.» Não há alterações de pessoas,
mantém-se a mesma estrutura que se auto-transformou num prodigioso fenómeno
mágico: somos os mesmos, mas somos diferentes... Lembra-me aquele pobre iraquiano,
com uma metralhadora na mão, quando os americanos entraram Bagdad adentro,
muito excitado: «Agora somos americanos!» Vi eu, no telejornal!
– Coitado!
E toda esta conversa vem a propósito do 25 de Abril, e de ter sido ou não uma
revolução. E estamos de acordo que foi, mas se calhar não era essa a ideia
original...
– Em 25 de
Abril, houve de facto uma revolução porque o golpe de Estado falhou. E falhou
porque diziam às pessoas para ficarem dentro de casa e elas saíram cá para
fora! A revolução assomou à janela, chegou à varanda, desceu ao passeio, e
chegou mesmo a pôr um pé na rua. E podemos chamar-lhe revolução porque, para
além da alteração do regime, do modo de governação, também houve uma alteração
profunda do próprio sistema – com as nacionalizações e a reforma agrária,
sobretudo. Mas não havendo qualquer registo na história de Portugal de uma
revolução digna desse nome, cumpriu-se a tradição, e a revolução recolheu-se. E
o golpe militar venceu, finalmente. Eis porque o 25 de Abril podia ser uma peça
de teatro em três actos: o golpe militar falhado, a revolução que se afirma e
recolhe, e por fim o golpe militar vitorioso.
– Se o
golpe militar a princípio tivesse sido vitorioso, aí é muito provável que
tivéssemos só a tal evolução...
–
Exactamente. Até poderia, sei lá, o Marcelo Caetano continuar. Até porque o
homem, honra se lhe faça, estava muito preocupado com a questão colonial e
tinha encetado negociações secretas com os movimentos de libertação. A
extrema-direita é que não o deixava trabalhar à vontade. Olhando para a
História, eu acho que o Marcelo Caetano chegou tarde demais. Se tivesse chegado
um pouco mais cedo, provavelmente conseguiria resolver alguns dos problemas...
Por exemplo: as pessoas atacam muito a descolonização, dizem que foi muito mal
feita pelo Mário Soares. Mas a descolonização foi a possível, porque quem a
deveria ter feito era o Salazar, se tivesse agido como o D. João VI – que dizem
que era anormal, mas pelo menos teve o rasgo de conceder a independência ao
Brasil. Se Salazar lhe tivesse seguido o exemplo, daria origem a novos brasis,
provavelmente ficaria na história, não teria havido a Guerra Colonial, não
teria havido a desgraça da descolonização, e por aí adiante. Há aqui
personagens que estão fora de tempo. Olhando para a História, o primeiro e
último responsável é um homem chamado António de Oliveira Salazar. Os outros
que se lhe seguiram correram, atrasados, para uma solução possível.
– Não houve
sequer tempo para negociar...
– Com
mísseis terra-ar na Guiné, e coisas desse género? Os primeiros que tomaram
consciência de que a guerra estava perdida foram os militares, não foram os
políticos. Ou melhor: alguns políticos da oposição já tinham constatado tal
facto, e se calhar há mais tempo; mas na altura, do regime, foram militares
como o Spínola e o Costa Gomes que se deram conta. A situação era
insustentável.
– É
inevitável que te pergunte: hoje, onde é que achas que está o 25 de Abril?
– A
pergunta podia dar-se a muita piada, e até a algumas intervenções graciosas,
mas eu vou assumir, muito seriamente, que o 25 de Abril está na possibilidade
que o povo português tem de votar e de eleger os seus representantes. Ficou
exactamente nessa grande conquista que foi a liberdade e o exercício livre do
direito de cidadania. Está no regime democrático. Que deve ser ainda mais
desenvolvido, mais aprofundado, com o espoletar de um cada vez maior número de
movimentos cívicos. Mas para já é aí que está o 25 de Abril.
In Contas à Vida | Ed. Sete Caminhos | 2005
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